sexta-feira, 3 de setembro de 2010

UM IDOSO NA FILA DO DETRAN

“O senhor aqui é idoso”, gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal “senhor”. Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.
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Olhei em volta e procurei com os olhos o velhinho, mas nada. De repente, percebi que o “idoso” que a dama solitária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.
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Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos “enta”; dos 50, quando, deprimido, se sente que jamais vai se fazer outros 50; e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na “terceira idade”.
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E muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de “idoso”, ainda mais numa fila do Detran. Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: “idoso é o senhor seu pai.”
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O que mais me irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E o guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim?
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Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: “esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim.” Mas que nada, nem um pio.
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O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima – do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: “Isso é uma sacanagem comigo.”, me disse, “eu não mereço.”
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Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: “Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas.” hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: “o senhor não tem mais de 65 anos? Não é idoso?
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Não, sou gestante – tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando: “não tenho mais, tenho só 65 anos.”
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O ridículo, a partir de certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. “Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15”, já ouvi essa discussão. Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe.
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Aí, se não me falha a memória – e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade - , me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anísio estariam sentados ali comigo.
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Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração há um respeitável time dos que não entram em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Gullar, Milton Coelho,Janio de Freitas (Lemos, Cony, Armando e Figueró já andam de graça em ônibus há um bom tempo).
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Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou com outro – de ano, meses ou dias -, e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo. Ah, sim onde é que seu estava mesmo? “No Detran”, diz uma voz. Ah, sim.
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“E o atendimento?” ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas mesmo sem entrar em fila passa-se um dia para renovar a carteira. Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade.


Autoria de Zuenir Ventura.

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